Quando eu era criança, o velório era um acontecimento. A cidade era pequenina, então tudo se divulgava
rápido. Em pouco tempo, o alto-falante da igreja onde o falecido frequentava
comunicava, em alto e bom som, o passamento
desta para uma vida melhor, ou se usava um carro anunciando
detalhes: quem morreu, onde, idade, motivo do óbito.
A morte pairava nas piadas! Antes de acontecer o pior,
até o doente bem humorado brincava: fiquei tão mal que por mais um pouco comia
capim pela raiz; pensei que ia vestir um pijama de madeira, etc... Depois, se
porventura o sujeito morresse, aí, sim, a coisa era levada a sério e o
sepultamento era um fato
social marcante.
Naquele tempo não se fechava uma tampa de caixão sem
jogar perfume e pétalas de flores sobre o defunto. Já fui encarregada de
comprar muito perfume ruth para
pulverizar por cima do morto. Nunca me esqueci do cheiro. O perfume, claro,
perdia a personalidade, por causa do odor muito forte de cravo, cravina, brinco
de princesa, de rosas miúdas de cores variadas. Não havia casa de venda de
flores, as crianças saiam pedindo nas portas das casas. Já ouvi muita coisa.
- Esse defunto morava em cima da pedra?
- Vou dar, mas não sei nem se merece.
- Vá em paz.
Houve negação:
- Pra aquele cara? Bata em outra porta.
A caravana de crianças saía em mutirão solidário e não
respondia a nenhuma provocação, nada. Quem deu, tudo bem.
As coroas de flores eram artificiais, confeccionadas
com papel crepom.
Excepcionalmente, aparecia uma coroa de flor natural.
Se morresse um bebê, a partir de um ano, ou um jovem,
as pessoas choravam mais, conhecendo ou não o falecido. Quando morria um
velhinho, a conformação era maior, mas mesmo assim, as pessoas choravam muito
mais do que hoje. Na hora em que o caixão ia passando para o cemitério, as
portas do comércio ficavam quase fechadas. Os rádios eram desligados, os homens
tiravam o chapéu, até o de palha; era muito silêncio. Se fosse enterro de
católico, o sino da igreja batia compassado: tom... tom... tom... E eu ficava
pensando, que pena! Devia tocar pra todo mundo.
Os velórios tinham longa duração.
Os alto-falantes, dependendo da importância do sujeito, davam uma nota, de
tempo em tempo, com uma voz de relações públicas de necrotério: “A família de ...
comunica a sua partida...” - anunciando a hora tradicional do sepultamento
que nem era mais novidade pra ninguém: 16h. Todo mundo lá era enterrado nessa
hora. Um dia falei para o meu pai que a nota de falecimento estava errada,
porque a pessoa que morre não parte, ela chega. E vi que ele acabou rindo.
A verdade é esta: chorava-se mais! Ainda
havia loja vendendo lenço pra todo lado e a gente, ao sair de casa,
ouvia a recomendação: não se esqueça do lenço. Tinha lenço de tudo quanto era
jeito: xadrez, de bolinha, de florzinha. Era muita lágrima! Nas festas de
aniversário o que mais as pessoas ganhavam era caixa de lenço.
O luto pela morte era longo. Minha avó ficou de luto
uns 20 anos e com as duas alianças no dedo: a dela e a do jovem marido
falecido. Depois começou a vestir roupa cinza, até se vestir,
discretamente, como viúva eterna: roupas feitas com tecido de fundo preto e
flores brancas.
O cemitério estampava, logo na entrada: revertere ad locun tuun. Fui
saber o que significava aquilo com o único funcionário no local: o coveiro.
Fiquei espantada, porque o coveiro respondeu, automaticamente: - a
tradução daquilo escrito ali é: - Volte ao teu lugar.
Ele “sabia” latim e eu detestava. Ele disse o que
significava a frase, sem olhar para a parede, sabia de cor.
É assustador, mas aprendi a falar a única frase que eu
sabia no primeiro ano do ginásio com o coveiro. E não deu outra. Na segunda
feira, estufei o peito e disse para a minha colega de carteira escolar: revertere ad locun tuun. Ela me olhou assustada e eu esnobei:
aprendi latim (ela também tinha horror) e disse a frase, várias vezes, sem
tropeçar na pronúncia e traduzi, sem dicionário. Ela ficou de boca aberta. Onde
você aprendeu tudo isto. E eu nem parei para pensar: - no cemitério.
Ela também passou a frequentar os velórios!
Ivone Boechat
(extraído do meu livro Educação-a força mágica)
Ivone Boechat
(extraído do meu livro Educação-a força mágica)
Gosto de ler o seu blog. Este texto parece com a realidade da minha pequena cidade.
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